Kobe Bryant e Travante Williams: uma obra escrita a meias?

Sei de gente que das ciladas da vida foi salva pela mão atenta e terna de um familiar ou amigo. Para muitos foi a arte a boia salvadora, não sendo poucos, sobretudo na música, os casos conhecidos. Outros haverá, que aqui constituirão a nossa prioridade, que de uma provável e iminente desgraça foram pelo desporto salvos. E quantos e quantos foram-no pelo basquetebol.

Travante Williams é, talvez, um desses casos. A maior parte da comunidade do nosso basquetebol está habituada a ver o número 0 do Sporting CP dentro do campo, de garras afiadas e dentes cerrados corporizando um verdadeiro animal selvagem no seu habitat natural. Vemos a sedenta maneira como com as mãos bate no chão a desafiar o atacante e admiramos um invulgar e felino sentido para a antecipação. Além disso, testemunhamos, no fim dos jogos e independentemente do resultado, a procissão de rapazes e raparigas que empunhando um telemóvel ou um pedaço de papel o abordam com o entusiasmo de quem verdadeiramente se aproxima de uma estrela. Uns envergonhados, outros expectantes; uns com uma camisola verde, outros com um cachecol vermelho no pescoço enlaçado. A idade, o clube e a origem são, no caso, variáveis que para nada contam; o certo é a admiração por alguém que talvez sem disso ter dado conta já se tornou uma estrela no nosso basquetebol.

Mas já lá vamos. No dia vinte e sete de janeiro, os amantes do basquetebol – bem como todos aqueles que, não o sendo, conseguiram apreender a dimensão incomensurável do seu legado – lamentavam a precoce morte de Kobe Bryant, acontecida na véspera. Um pouco por todas as plataformas e meios de comunicação surgiam efervescentemente testemunhos, histórias, confissões e sobretudo francos e fundos agradecimentos pela maneira mais ou menos evidente como a obra do Black Mamba influenciou uma infinidade de percursos e caminhos, dentro do campo e principalmente, diria, pedindo já perdão pelo eventual desacerto, fora – e além – dele.

Tornou-se impossível acompanhar o curso alucinante a que prontamente se sucediam os agradecimentos a Kobe Bryant; foi como se cada um de nós estivesse para Kobe guardando secreta e intimamente, durante os últimos anos, uma palavra funda e inédita que não contávamos invocar tão cedo.

A este respeito houve, para mim, mesmo sabendo da intrínseca subjetividade destas matérias e sem desprimor pela beleza de tantas outras, uma partilha que pelo seu valor afetivo, simbólico e familiar se destacou.

Justamente a de Travante Williams. A partir das redes sociais do jogador, pródigas tanto em testemunhos de uma quase carnal dedicação ao basquetebol quanto em momentos, digamos, cómicos, pudemos ver a carta, datada de 2007, que um jovem que ao tempo se identificava como “Travante Williams, de treze anos, natural de Anchorage, no Alaska”, escreveu a um Kobe Bryant catorze anos mais velho que, na antecâmara da melhor fase da sua carreira, nessa mesma época acabaria, pela segunda vez, como líder marcador da NBA.

Obedecendo ao milenar princípio que aconselha à leitura das fontes primárias, a mais informada sugestão que posso fazer será então a de que leiam, efetivamente, a carta. Nem por isso deixaremos, no entanto, de lhe fazer nesta sede referência, com um pequeno e obrigatório spoiler alert.

Prossigamos. Há livros que das centenas de páginas, depois de bem espremidas e com uma misericordiosa e complacente vontade, o sumo extraído é pouco, pouquíssimo, não mais que o bastante para muito timidamente preencher o fundo do copo. Diferentemente, das vinte linhas escritas pelo jovem Travante o que verte é, em primeiro lugar, uma série emaranhada de azares e contrariedades mas sobretudo uma garantia, feita quase sob compromisso de honra, de que independentemente do curso incontrolável que regula o mundo exterior, há por dentro uma fé indescritível de que tudo se comporá. Há, porque tem de haver. E se não for encontrada será por não estar a procura a vasculhar nos lugares certos. Pelo menos assim é com os campeões.

No seguimento da carta, o jovem Travante, que na verdade não sabemos se pequeno se gigante, lúcido e descomplexado, realista na abordagem e confiante na importância da mensagem, previne Kobe de que o que se segue não será a habitual narrativa da pacata e vistosa vida de um jovem de treze anos: “nem todos os adolescentes passam pelo que eu passo”.

E é nas linhas seguintes que percebemos por que motivo será tão ínfima e relativa essa contrariedade de ser-se dispensado de uma equipa ou de para nós não reservar o treinador mais do que o estritamente obrigatório tempo de jogo. “As drogas têm estado na minha família da mesma forma que o nosso sangue”. Subitamente, o pequeno Travante, que aos mais desatentos olhos pouco pareceria além de um aprendiz à procura do derradeiro ensinamento começa a crescer, eleva-se e a determinada altura, quase sem darmos conta, transforma-se em mestre e é afinal Kobe Bryant quem de queixo contra o peito se senta em silêncio, atento à lição do pequeno Travante que aos treze anos ainda não era ministrada dentro do campo, mas fora dele.

As drogas e a prisão têm mantido o meu pai ausente, neste momento está a cumprir 27 anos”. Prossegue com a serenidade e a lucidez de quem apesar de descrever factos segura sigilosamente uma pequena maré atrás dos olhos: “A minha mãe foi pelo mesmo caminho; as drogas e a prisão têm-na mantido longe de nós. Quando ela foi presa fiquei só com os meus irmãos. Mas depois eles deixaram o basket e seguiram o caminho do meu pai. Então eu fiquei sozinho e fui viver com a minha avó”.

E Travante, que numa das mãos segura a bola e na outra, momentaneamente, a pena, termina em aberto, como mandam os bons cânones. “Eu não quero ser mediano. Quero ser uma estrela. Mas não no céu”.

Ora, segundo o próprio Travante, é provável que Kobe nunca tenha chegado a ler a carta. Seja como for, na eventualidade de a ter lido, ou se a pudesse ler, tenho a certeza que se levantaria para aplaudir esse jovem de treze anos que com a casa às costas e como trunfo invocando o amor fundo da avó se tornou, anos volvidos, uma estrela. E sorte a nossa de por este feliz acaso podermos testemunhar o nascimento – e a ascensão – de uma estrela.

Com as naturais distâncias ressalvas, suspeito que na pureza dos conceitos são semelhantes as lições de Kobe e de Travante. Tanto para um como para outro ergue-se o pano e através de uma obra que para Travante foi com Kobe em conjunto levantada do chão percebemos que, afinal, o truque é simples: aplicar constantemente o máximo de esforço e de entusiasmo a fim de alcançarmos um bem que não só para nós seja grandioso, mas sobretudo para a comunidade.

E se foi no mago e eterno Kobe Bryant que Travante viu transparentemente a força soberba e avassaladora para reduzir a pequenas espinhas o que para alguns constituiria certamente uma inelutável desgraça, quem sabe possam muitos jovens ver em Travante a estoica resiliência que procuram e desse modo serem eles próprios, um dia, a dirigirem-lhe a sua carta.

É que no fim do dia, meus senhores, é isto mesmo o basquetebol, sem tirar nem pôr: devoção, superação e mais importante que tudo, salvação.

 

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