O basquetebol de província

“Há várias pessoas que conheço há décadas e que nunca se tinham interessado por basquetebol. Este ano começaram a vir ao pavilhão para verem os nossos jogos”. Foi nestes termos que começou uma conversa que tive há alguns meses com Manuel Fortes, um dos cérebros da secção de basquetebol do Estrela de Santo André (ESA), depois da equipa alentejana ter recebido em casa a formação da Académica/Efapel. Mas já lá vamos. O caminho é longo e manda a boa prudência que não o queiramos fazer todo num passo.

A descentralização é, como bem sabemos, um dos mais debatidos assuntos dos últimos anos – talvez das últimas décadas -, no nosso país. A cada legislatura, e ainda que parcas e tímidas, parecem medrar novas medidas de apoio aos que travam a quem sabe inglória e apartada luta contra as marés das grandes áreas metropolitanas. É certo e sabido que a narrativa da descentralização é mais que conhecida de todos, e não valerá a pena reproduzir aqui a argumentação teórica que é aduzida. Interessa-me nesta sede, isso sim e na medida do meu engenho e conhecimentos, debruçar-me sobre uma mais afunilada realidade, a partir de um exemplo concreto: o crescimento do basquetebol longe dos grandes centros.

Vejamos. Pela natureza das coisas é evidente que a generalidade dos grandes polos desportivos, tanto no que respeita ao número de atletas como de títulos, está, e continuará a estar sedeada em zonas de elevada densidade habitacional e empresarial. As razões, como bem compreendemos, são auto explicativas: mais numerosa massa humana e maiores meios financeiros. Mas falemos, então, de basquetebol. Não obstante os ainda curtos anos que tenho de contacto e dedicação ao basquetebol, consequência da também tímida idade, tive já oportunidade de verificar que nos arredores da cidade onde por grande sorte habito – Sines – só muito raramente houve alguma equipa que durante uma época pudesse contar mais vitórias do que derrotas. Na formação, e segundo me recordo, chegaram a existir algumas equipas relativamente sólidas e trabalhadoras – sobretudo no CAB Grândola -, mas a chegada a uma final 4 distrital quase sempre foi um sonho longínquo, da ordem do utópico.

Passaram tempos e tempos sem que a narrativa sofresse grandes alterações, e bem sabemos que a partir de uma certa idade as vitórias morais que muitas vezes como trunfos são invocadas pelos treinadores pouco contarão para a luta diária dos nossos atletas. Até que há um par de anos – e será este o ponto que merecerá a minha humilde atenção – parece ter sido fecundado um projeto prometedor no litoral alentejano. Devo já pedir um antecipado perdão a algumas outras construções quem sabem tão ou mais meritórias que tenham despontado nos últimos anos, no nosso país; acontece que o conhecimento é limitado, bem como os sentidos, pelo que só me focarei na realidade que conheço de perto. Adiante.

Refiro-me ao Estrela de Santo André (ESA); em concreto, devo dizer, atribuindo os louros a quem os merece, à sua secção de basquetebol. O projeto do ESA, para muitos, naturalmente, desconhecido, tem sido desenvolvido em torno de dois eixos basilares: a criação de uma equipa sénior competitiva e o compromisso sério com a construção de uma formação eclética nos vários escalões, masculinos e femininos. Não podemos redimensionar o tempo, e por isso devo esclarecer que me refiro aqui a um projeto recente; mas se é certo que nem tudo o que é pequeno se tornará grande, não tenhamos dúvidas de que tudo quanto é grande foi, outrora, pequeno.

Até à interrupção da época desportiva, a equipa sénior do clube, que alinha no campeonato nacional da 2.ª divisão, tinha perdido 2 jogos: um contra o SC Marinhense e outro contra a Académica/Efapel, numa partida da 1.ª eliminatória da II fase da Taça de Portugal. Além do desempenho dos mais velhos – determinante, nas palavras da secção, para o enriquecimento e a vontade dos mais novos -, houve, também, um olhar prioritário para a formação, com a criação de novas equipas e escalões. Como dizia Eanes, “em tempos incertos, vai-se ao local”. Dirijamo-nos, então, a Vila Nova de Santo André, para tentar compreender, junto dos seus arquitectos, a maneira como foi levantada esta ideia.

“Estávamos cansados de perder. Queríamos construir um projeto que nunca foi construído no litoral alentejano”, é assim que começa Manuel Fortes, a quem se deve, talvez, a semente inicial do projeto. Destaco, além dele, outras duas pessoas, cujo trabalho levanta do chão uma nova esperança no basquetebol para o Alentejo, quem sabe extensível a outros lugares: Timóteo Pfumo, coordenador da formação do ESA e recentemente distinguido pela FPB, e Carlos Violante, treinador da equipa sénior.

É evidente que não será através de geração espontânea que surgem estas pequenas revoluções; além do trabalho diário, da luta do corpo e da alma, é inútil tentar fugir à derradeira e fatal necessidade dos recursos financeiros. E a esse respeito esclarece Manuel Fortes: “Reunimos, na nossa zona, alguns patrocinadores; além disso, houve um investimento da nossa parte. Notámos que as pessoas queriam participar no projeto”.

Para nos tornarmos mais próximos do que está em causa, na equipa sénior do ESA alinhavam, na presente época, vários nomes conhecidos do nosso basquetebol, muitos deles com experiência de Liga, Proliga e seleções nacionais. Não sendo exaustivo, refiro, por exemplo, os nomes de Aylton Medeiros, Nuno Monteiro, Ricardo Robalo ou Benvindo Mendes. É evidente que a logística necessária à deslocação dos atletas é complexa, e a esse respeito refere Carlos Violante que os seus jogadores são “malucos pelo basket, porque saem da zona de Lisboa ao fim da tarde para virem treinar a Santo André, e chegam a casa, a dias da semana, só às duas horas da manhã”. Para os menos esclarecidos quanto aos solavancos geográficos do nosso Portugal, pode ser importante o esclarecimento de que uma viagem entre V.N. de Santo André e Lisboa demorará, em média, uma hora e meia.

Continuemos, de espírito aberto, a nossa investigação. Já com várias décadas dedicadas ao basquetebol, Timóteo Pfumo, agora numa diferente função de coordenador, refere que um dos grandes objetivos é o de integrar, progressivamente, os atletas da terra na equipa sénior: “Temos 3 atletas sub18 que já jogaram na equipa sénior, e com prestações de relevo”. No seu discurso há um outro ponto que me parece de destaque importante, e que tem tanto de bonito como de lógico: o fluxo entre a formação e a equipa sénior deverá ser bidirecional. “Queremos ter os jovens a ver os jogos dos seniores, mas queremos ter também os seniores a ver os jogos da formação. Não há outra hipótese. Estamos a trabalhar nesse aspecto”.

E se tem a equipa tentado fazer alguma coisa pela dignificação do desporto na cidade, é também certo que a comunidade tem, afincadamente, correspondido à chamada. Em vários jogos da equipa sénior a assistência foi superior a trezentas pessoas, lotação ao nível – ou até acima… -, portanto, de algumas equipas das principais competições nacionais. E neste trilho prosseguindo, deve também dizer-se que se é lógico que as vitórias ajudam ao aumento do interesse do público, é também verdade que se nota um amor e devoção novos, alegres e quase inexplicáveis, pelo basquetebol na terra. É nesse sentido que vão, se me permitem, as mais importantes palavras de qualquer dos três interlocutores: “Vemos miúdos que fazem o caminho da escola para casa a driblar. As tabelas das escolas estão constantemente ocupadas. Sobretudo por eles temos a obrigação de continuar”.

No país não serão poucas as localidades com características semelhantes às de Vila Nova de Santo André: uma cidade pequena, com dez mil habitantes, afastada das grandes metrópoles. Por esse motivo interrogo-me sobre a possibilidade de um modelo semelhante ao do ESA poder ser replicado noutras latitudes.

Devo dizer que não me parece haver, a este respeito, qualquer segredo a desvendar. Julgo até, e com a ressalva de uma eventual extrema simplificação, que todas as cartas estão na mesa, e com a figura virada para cima. Tentando dissecar o caso, e sabendo que a construção do ESA não vai, neste momento, além de um (muito) prometedor início, afigura-se-me que será simples a matéria prima indispensável para esta empreitada; em primeiro lugar, e pelo chão começando, a necessária harmonia entre um conjunto de pessoas cuja devoção ao basquetebol seja, digamos, inexcedível, de preferência no espetro do doentio. Depois, constituídas as sólidas fundações, e não ignorando que talvez seja em demasia ingénuo o meu jovem espírito, julgo que bastarão, como principais alicerces, a existência de um pavilhão, duas tabelas e meia dúzia de bolas de basquetebol. A partir daí será o maior ou menor engenho de cada um para mobilizar a massa humana – de atletas e de patrocinadores – que fará diferença. E esse engenho é duvidoso que possa ser ensinado; mas pode, certamente, ser aprendido.

Bem sabemos que um dos expedientes mais frequentemente invocados para desculparmos uma certa inércia da nossa parte – e eu já deles usei, mais do que uma vez – terá que ver com a circunstância de nos encontrarmos, à partida, limitados pelas nossas condições externas: a zona do país onde nascemos ou vivemos será talvez um dos trunfos mais utilizados. Se é certo que muitas vezes se torna complexo superar algumas dessas barreiras, é também verdade que podemos equilibrar os pratos da balança com uma nova e mais aberta disposição interior.

Ora, além da luta individual dos atletas, treinadores e árbitros para se tornarem melhores executantes e praticantes, haverá uma outra luta que é, ou deverá ser, transversal: a luta pela evolução, profissionalização e expansão do nosso basquetebol. Refiro-me a uma batalha altruísta, travada dentro e fora do campo, em que poucos saberão, ao certo, e por não ser esse o fito, o que dela para si poderão retirar.

Ainda que timidamente e com pequenos solavancos, parece certo que o basquetebol português está em crescimento, e este forçado interregno pode também servir para não só disso nos apercebermos com mais clareza, como também para procurarmos entender de que tamanho poderá ser a nossa – sempre humilde mas determinante – contribuição para os novos rumos deste desporto que pela feliz mão da genética e das vivências deixou, há muito, de ser para nós só um desporto. E parece-me que a dos pequenos clubes a que, afetuosa e intimamente chamo, aqui, de clubes de província é imensa. O basquetebol está muito longe de se reduzir às competições profissionais; fora delas, ou até além delas, há todo um conjunto de pequenas comunidades – territoriais e sociais – cuja devoção dos seus membros constituirá, certamente, um impulso em falta. Em terras pequenas, como Vila Nova de Santo André. Em clubes de província, como o ESA. Se Portugal, como pequeno país, sonha em poder afirmar-se como uma futura referência internacional, não podem as pequenas terras furtar-se à missão de se afirmarem como uma potência – formativa ou competitiva – no basquetebol nacional.