Inês Vieira: “Sonhava jogar em Espanha desde criança”

Em entrevista com Ricardo Brito Reis, a internacional levantou o pano sobre a sua carreira

Seleção Nacional Feminina
21 AGO 2025

“Quando passo a bola, faço duas pessoas felizes”. É com esta filosofia que Inês Vieira construiu o seu jogo, da Madeira até à NCAA, e agora em Espanha. Depois de quatro anos a liderar a Universidade de Utah com inteligência, visão e defesa sufocante — a tal que lhe valeu a alcunha de “The Mosquito” —, a base internacional portuguesa está pronta para dar o próximo passo.

Ainda tens memórias dos teus primeiros treinos na Ilha da Madeira?
Tenho muitas memórias, sim. Comecei a ir para o pavilhão porque o meu pai era treinador das séniores do CAB, e eu estudava mesmo ali ao lado. A Gilda Correia, que ainda estava lá na altura, ia-me buscar à escola às vezes e levava-me para o pavilhão. Passava o dia inteiro lá, e comecei a apaixonar-me pelo basquete assim, a viver no pavilhão, basicamente. Os meus amigos de infância, da Madeira, ainda são os meus amigos hoje e vão ser para a vida.

Lembras-te de algum treinador que tenha sido especial nessa altura?
Sim, a Fátima Freitas. Ela teve um papel muito importante, ajudou-me a perceber o jogo — as leituras, os fundamentos — e deu-me imensa confiança e oportunidades. Como o contexto na Madeira é pequeno e há menos competição, eu jogava quase sempre acima do meu escalão. E isso ajudou-me muito, a crescer com jogadoras mais velhas.

E quando sais da Madeira para Lisboa, ainda tão nova, como é que foi esse processo?
Foi difícil, no início. Mas os meus pais deixaram-me ir com mais tranquilidade porque tínhamos família em Lisboa. No primeiro ano fiquei com o meu tio, irmão do meu pai, e depois também com o José Leite, a Nani… essa família ajudou-me imenso. Como o meu tio trabalhava muito, acabava por estar muito com eles. Fui para os Lombos e para o CAR, e era algo que eu já queria há muito tempo: representar o nosso país, estar na Seleção Nacional. Os meus pais e a minha irmã sempre me apoiaram. Era, e ainda é, o meu sonho. Mas foi uma mudança grande. A Madeira é uma bolha, e de repente estava num mundo totalmente diferente.

É curioso dizeres que já sonhavas tão cedo com a Seleção. Normalmente, os atletas só falam disso mais tarde…
Eu sempre quis ser jogadora profissional, e na minha cabeça isso implicava estar na Seleção.

O que te marcou mais da passagem pelo CAR Jamor?
Resiliência. Acordávamos cedo, íamos para a escola, depois tínhamos treino de lançamentos, almoçávamos, voltávamos à escola, depois três horas de treino, jantar… e ainda tínhamos de estudar. Não era assim todos os dias, mas muitas vezes era. E começámos novas, com 14 ou 15 anos. Ao início foi muito duro. Cheguei a ter dias em que só queria ir embora. Mas os meus pais sempre disseram: “Tomaste esta decisão, agora vais cumpri-la”. E eu: “Ok”.

Choraste muitas vezes no quarto?
Sim, chorei.

Mas teres uma família ligada ao desporto deve ter feito toda a diferença. Qual foi o conselho mais valioso que recebeste dos teus pais?
O mais importante, tanto do meu pai como da minha mãe, foi: “Se começas uma coisa, tens de a acabar. Nunca fiques a meio, nunca desistas, porque começaste por alguma razão”. Foi o que me guiou em muitos momentos e quando fui para os Estados Unidos, senti isso novamente.

Como foi o processo de recrutamento para a universidade de Utah? Foste observada em competições da Seleção?
Sim, foi nas Seleções que me viram. Jogar por Portugal ajuda muito a seres vista a nível internacional, especialmente em Europeus da FIBA, onde há muitos olheiros.

O que te fez escolher Utah? Tinhas outras opções na altura, não tinhas?
Tinha. Escolhi Utah por várias razões. Primeiro, queria uma experiência diferente. Tinha ofertas na Flórida, mas Utah tem as quatro estações, neve, montanha, algo novo. Depois, houve uma coincidência bonita: o meu pai tinha treinado, quando era mais novo, o pai de uma família que vive lá. Mas acima de tudo, escolhi Utah pela Pac-12, uma das melhores conferências dos EUA. Queria competir com as melhores, aprender com jogadoras que depois foram para a WNBA. E o mais importante foi o ambiente: a treinadora, o staff, as colegas. Era uma família. Senti que era o lugar certo. Não sei explicar, foi um feeling.

Essa treinadora de que falas é a Lynne Roberts, que agora está nas Los Angeles Sparks?
Sim, exatamente.

Que curso terminaste durante os teus quatro anos nos Estados Unidos?
Business Management.

E que tal, sentes que fizeste a escolha certa?
Sim, sem dúvida. Foi uma experiência incrível. Vou voltar agora durante um mês, até, para estar com amigos e com a minha segunda família. Ainda não consegui “deixar” aquilo, não deu…

Se calhar devias ter escolhido a Flórida, que era mais perto!
Pois… mas em Utah criei ligações para a vida. Amizades mesmo fortes. Tive uma experiência incrível. É outro mundo.

Disseste que querias algo diferente. A Flórida talvez fosse mais parecida com Portugal, pelo clima, o mar… Querias mesmo sair da zona de conforto?
Sim, fez-me pensar: “Vamos ver se consigo sobreviver aqui!” E olha… foram os melhores anos da minha vida.

Os primeiros tempos devem ter sido duros…
Foram. Quando cheguei ainda era época de Covid. Tive de tomar a vacina e fiquei de cama dois dias, com jet lag em cima. Os meus pais não puderam ir comigo por causa das restrições, por isso fui sozinha, com as malas todas. Mas tive muita sorte com a minha classe de freshman — a Jenna Johnson, a Gianna Kneepkens — ficaram todas quatro anos juntas comigo, o que hoje é raro com tantas transferências. Ajudaram-me imenso. Nunca me senti sozinha.

Criaram mesmo uma comunidade forte.
Muito forte. Era uma equipa sem drama. Muito unida. E depois há coisas que não se explicam… a altitude, por exemplo.

Sentiste logo a diferença?
Imenso! Utah é nas montanhas. Nos primeiros treinos não conseguia respirar até ao fim dos exercícios. Mas depois, quando jogávamos noutros estados, como a Califórnia, voávamos em campo. Estávamos habituadas à altitude e notava-se.

E em termos de treinos?
Muito diferentes. A qualidade dos pavilhões, os recursos, tudo incrível. Mas os primeiros tempos foram difíceis, mais pelo lado emocional. Estava longe da família, doente, com tudo a acontecer ao mesmo tempo. Nessas alturas, só pensas nas coisas más.

Houve momentos em que pensaste desistir?
Sim. Liguei aos meus pais a dizer que queria voltar. Mas eles foram firmes: “Tomaste uma decisão, estás aí por uma razão. Foca-te nisso”. E ajudou muito.

Quando olhas para a Inês que chegou e para a Inês que saiu de Utah, o que mudou?
Estou mais forte… Eu era um palito! [risos] Mas acho que a minha visão de jogo melhorou muito. Lá joga-se mais no 1×1, é um estilo diferente, e acho que consegui expandir o meu jogo. Melhorei o passe, a defesa e o lançamento. E ganhei muita experiência. Joguei contra jogadoras que agora estão na WNBA.

Como é viver a March Madness por dentro?
Incrível. Parece que entras noutro portal. É outra dimensão. Estás a jogar contra as melhores equipas do país, com um ambiente único. Dá mesmo gozo.

Quando é que te começaram a chamar “The Mosquito”?
Acho que foi no meu segundo ano, de sophomore. Houve um jogo em que roubei duas bolas seguidas e o speaker começou a gritar “The Mosquito”! Eu odiava, pensava: “Mas porquê mosquito? Que inseto irritante…” Depois percebi — porque sou chata, não largo, estou sempre ali, a pressionar. E comecei a assumir. Fizeram até t-shirts com a minha cara e a dizer “The Mosquito”.

Nestes quatro anos, viveste momentos incríveis. Um dos mais marcantes foi aquele jogo decidido no prolongamento, com um lançamento de meio campo. Mas lembro-me sobretudo do arranque da tua terceira época, em novembro de 2023: lideravas vários rankings de assistências, assist/turnover ratio… Chegaste a estar no 3.º lugar nacional em assistências — com mais de 350 universidades na Division I — e uma das duas atletas que estava à tua frente era a Caitlin Clark. Que significado teve para ti aparecer nesses rankings? Sentiste que essa passou a ser uma das tuas imagens de marca?
Sim… embora eu tente não pensar muito nisso. Nunca fui de olhar para estatísticas, porque depois entras demasiado na tua cabeça e deixas de jogar solta. O meu pai é que me dizia — eu nem fazia ideia de algumas dessas coisas. Mas claro que é incrível. No meio de tantas jogadoras, é mesmo especial. E acho que tem tudo a ver com a forma como jogo. Gosto de criar, de passar. Quando passo a bola, faço duas pessoas felizes.

Atingiste uma marca muito bonita: as 500 assistências na tua carreira NCAA.
Sim… na altura nem sabia! [risos] Eu não ligo muito a isso. Claro que tenho objetivos em cada jogo, mas são coisas que guardo para mim. Se começo a falar sobre isso, perde um bocado o sentido.

Defines objetivos em cada jogo?
Sim, visualizo muito antes dos jogos. Gosto de passar algum tempo sozinha e pensar nisso, mas guardo para mim. Não comento com ninguém, nem com os meus pais. Não sei explicar, sou assim.

Dentro de campo, o que te dá mais gozo?
Roubar uma bola! [risos] Tenho mesmo orgulho no meu lado defensivo. Se estou bem na defesa, sinto que o ataque vem naturalmente. E dá-me gozo ver a frustração da adversária. Ver que está a stressar. Os treinadores diziam muito: “Nunca faças duas más jogadas seguidas”. Se o ataque não está a sair, foco-me na defesa. Tenho que roubar uma bola.

Disseste há pouco que a tua visão de jogo foi uma das coisas que mais melhoraste na NCAA. Como trabalhaste isso?
Ver jogos. Rever os jogos. As nossas treinadoras sempre nos incentivaram a fazer isso. Lá é tudo muito baseado em scouting, estratégias. Eu via os jogos outra vez, às vezes logo a seguir, para perceber o que podia ter feito diferente. Tirava notas. E com o tempo, ganhas mais experiência.

No arranque desta última época, foste nomeada para a lista de observação do Nancy Lieberman Award, que distingue a melhor base da Division I. Ver o teu nome entre as melhores bases da NCAA foi especial?
Sim, foi surreal. Nem fazia ideia.

Há um ano viste a tua colega Alissa Pili ser escolhida no draft da WNBA. Este ano, algumas equipas da WNBA seguiram os teus jogos. Quando chegou o draft, sentiste algum nervosismo ou esperança secreta de ouvir o teu nome?
Para ser sincera, sabia que era muito difícil. Há poucas equipas, e mesmo jogadoras muito boas estão a ser cortadas. É um mundo à parte, é negócio. Agora fala-se em expandir para mais quatro equipas nos próximos anos, e aí pode mudar. Mas eu própria sinto que ainda não estou ao nível delas. Estou agora a começar a minha carreira na Europa, e vai ser muito bom ver essa evolução. Jogar com atletas mais maduras, em ligas muito competitivas. Acho que o jogo europeu é o melhor: rápido, jogado em equipa, completo.

Mas a WNBA continua no horizonte?
Sim, continua. É um objetivo difícil, mas não é impossível.

Uma das tuas grandes referências é a Ticha Penicheiro. E tiveste a oportunidade de estar com ela no All-Star da NBA, em Salt Lake City, perto da tua universidade. Como foi esse momento?
Foi incrível. Surreal mesmo. Nunca tinha falado com ela cara a cara. Ela é o ídolo de quase todas as jogadoras portuguesas. Tinha chegado de um jogo nessa noite, e fui lá ter. Ver todas aquelas figuras — Carlos Barroca, Mery Andrade, Neemias Queta, Rúben Prey — foi mesmo especial. E depois ver celebridades da NBA, o LeBron James… Foi “uau”.

Agora viras a página. Vem aí a Europa, a tua estreia profissional. Vais jogar na LF Challenge, em Espanha — uma liga dura e muito competitiva, onde têm jogado várias portuguesas. Como surgiu essa oportunidade?
Terminei a faculdade e consegui um agente — o Daniel Prince — que já conhecia o meu pai há algum tempo. A partir daí foi tudo natural. Eles trataram de tudo. O Iraurgi contactou a agência, e pronto… foi isso. Não há grande história por trás.

Há quem diga que o basquetebol espanhol é o melhor da Europa. Também tens essa ideia?
Sim. Quando eu era pequena, vivemos um ano em Espanha, porque o meu pai era treinador-adjunto no Perfumarias Avenida. Eu tinha uma jogadora preferida na altura e fiquei com esse sonho. Sonhava jogar em Espanha desde criança. É perto de Portugal, sim, mas o que me atrai mesmo é a qualidade do jogo.

O que é que te prende ao basquetebol espanhol?
A habilidade das jogadoras. Todas sabem fazer tudo. Lançamento, técnica, visão de jogo… E jogam rápido. Eu gosto de jogo rápido.

Acreditas que o teu estilo encaixa bem lá?
Acho que sim. Vamos ver.

Tens falado com outras portuguesas que estão ou estiveram nessa liga?
Sim, falei com a Eva Carregosa, com a Josephine Filipe, com o Ricardo Vasconcelos… Fiz perguntas, estava curiosa. Como funciona o calendário, como é a equipa, quem era o meu treinador. A Josephine falou-me da ética de trabalho e isso deixou-me mais descansada. O primeiro treino é sempre um momento especial e eu já passei por isso antes. Agora quero estar ainda mais preparada.

Já te imaginas no teu primeiro jogo profissional?
Sim. Vai ser diferente, mas muito fixe. Vou para o País Basco, e apesar da língua, eles falam espanhol e inglês. Estou tranquila.

Como gostas de definir objetivos… já tens algum para esta época?
Já. Mas só partilho com a minha família. [risos]

Em relação ao EuroBasket, estiveste na pré-convocatória. Esse reconhecimento deve ter sabido bem.
Sim, claro.

Vês esta geração NCAA, de que fizeste parte, como uma mais-valia para a Seleção?
Acho que sim. A experiência de estar fora, de jogar num estilo diferente.

Quando pensas no teu futuro na seleção nacional, que papel te imaginas a ter?
Quero trazer o que já é meu — visão de jogo, defesa, lançamento — e aplicá-lo na seleção.

E ser líder também na seleção sénior.
Sim, chegará esse dia.

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