José Araújo: “O Europeu de Matosinhos ficou-me atravessado”

"A Seleção é maior do que o resto"

Treinadores
17 OUT 2025

José Araújo cumpre a segunda temporada no BC Marburg, abriu 2025-26 com três vitórias em três jogos e aposta numa equipa equilibrada, agora com as portuguesas Sara Barata Guerreiro e Ana Raimundo. Em entrevista exclusiva à FPB, o técnico, também selecionador Sub20 femininos, explica o que encontrou nesta segunda passagem pela Alemanha, a ponte entre a Seleção Nacional e as Sub20, e um Europeu que lhe ficou “atravessado” em Matosinhos.

Chegaste ao Marburg com a época passada em curso e a equipa a atravessar uma fase negativa. Como surgiu este convite?

Eu já tinha estado aqui duas épocas. Vim na altura em que saí da Roménia. Cheguei a uma equipa que estava na 2.ª divisão e o plano era ficar mais um ano, mas depois veio a Covid-19 e todas aquelas confusões. Tinha algum conhecimento do campeonato alemão, embora ele tenha mudado e esteja mais interessante do que há cinco ou seis anos, quando cá estive pela primeira vez. Lembrava-me do Marburg, de jogar contra eles, e acompanhei mais quando a Laura (Ferreira) e a Maria (Kostourkova) jogaram aqui. A Simone (Costa) também esteve cá, mais recentemente. E em Marburg jogou a Marta Vargas um ano; fui acompanhando e vendo a evolução da liga, sobretudo por serem jogadoras da Seleção. Quando me falaram a primeira vez, estudei a equipa à distância. Foi a primeira vez que peguei num projeto a meio, nunca o tinha feito. É diferente, mas foi um desafio muito interessante.

Quando entras num comboio em andamento, quais foram as tuas prioridades para mudar o rumo?

Primeiro, perceber muito bem como a equipa jogava, o que procurava no ataque e na defesa. As coisas não estavam claras: a equipa estava numa dinâmica má e não era claro o que se fazia em ataque e defesa. Havia muita vontade, mas também muita confusão e ansiedade. Percebi que tínhamos duas ou três atiradoras, uma delas muito boa, uma autêntica “sniper”, e não entendia como é que a equipa não tirava partido disso. Os lançamentos eram precipitados, maus, ou fora das zonas onde elas eram realmente eficazes. Isso ajudou-me a preparar melhor o “spacing” para as jogadoras que tinha. Defensivamente tivemos de construir quase tudo, porque a filosofia anterior era completamente diferente da minha. Não há só uma forma de fazer bem as coisas. Cheguei e fiz dois treinos; um dia e meio depois já estávamos a jogar. Nem sabia bem os nomes de todas. O primeiro mês foi duro; fui mudando as coisas paulatinamente. Tinha a dúvida se seria fácil para elas largarem o que faziam e pegarem em coisas novas. Curiosamente, como a dinâmica começou a mudar e agarraram-se às ideias novas. Começámos a competir. E tive muita sorte com o carácter das pessoas que encontrei aqui. Receberam-me bem. Se apanhasse um grupo com carácteres diferentes, teria sido mais difícil.

Conseguiste a manutenção e, esta época, arrancaste com três vitórias em três jogos. Que metas traçaste para 2025-26?

Em teoria estamos no último terço da tabela a nível de orçamento, mas a liga deu uma cambalhota: a ideia era 14 equipas e passaram a 10. Para uma equipa como nós, cujo objetivo é o playoff, há menos jogos para ganhar, digamos assim. Com 10 equipas fazem-se duas voltas e meia; depois dividem em dois grupos e cinco equipas jogam uma terceira vez. A primeira volta nunca é igual à segunda, a ordem das jornadas muda, é estranho. O objetivo do clube é o playoff. No ano passado, mesmo sem descidas, a pressão interna era playoff. Este ano, com pré-época minha e alguma continuidade, a equipa está mais equilibrada, com mais opções. Mantivemos seis ou sete jogadoras que me davam garantias na liga e trouxemos gente nova com critério. Não controlo tudo e o orçamento é o que é, mas fizemos um bom trabalho no verão e estou muito contente com a equipa.

Duas dessas opções novas são portuguesas, a Sara Barata Guerreiro e a Ana Raimundo. Como nasceram essas contratações e o que traz cada uma? Pelo menos podes falar Português.

Em jeito de brincadeira: ao segundo ou terceiro dia de pré-época, a base mais nova já estava a dizer duas asneiras em português. Não sou só eu a desenferrujar o “Português”, elas apanham tudo.

Sobre a Sara: precisava de um 2/3. Não quis ficar com a europeia que cá estava e, entre ir buscar alguém muito experiente – cara e possivelmente já longe das melhores condições – e apostar numa jogadora com potencial, surgiu a Sara. Conhecia o percurso dela na universidade, o Ricardo também me tinha falado que a ia chamar para as Universíadas, e aquilo ficou-me na orelha. É abnegada, trabalha muito, fisicamente muito boa, ganha muitos ressaltos e tem muita vontade. Foi falar com ela, acertar detalhes com agentes, e fechámos o acordo. É potencial enorme e em evolução, duas coisas que gosto de trabalhar.

A Ana foi diferente. O plano era ter mais uma base alemã, olhámos para jovens talentos, mas havia indecisão e comecei a ficar preocupado. Soube que a Ana queria mudar-se para a Alemanha e resolvi o problema. Tenho uma base muito nova, fez agora 20 anos, e juntar juventude e experiência deu-nos duas bases muito diferentes, com coisas importantes para nós. É a primeira experiência dela fora de Portugal; sentiu a fisicalidade no início, estava habituada a 30 e tal minutos e agora não precisa, nem eu quero. Vejo-a feliz, espero não estar enganado. E logo na primeira jornada, quando o jogo não estava a sair, entrou e controlou, e ainda fez as tropelias dela: colocou o ritmo certo, correr quando era preciso, não correr quando não era. A experiência a falar. Curiosamente, as duas bases encaixam muito bem.

Disseste que não querias ninguém acima de 30 minutos, mas tens duas jogadoras nesse patamar, uma delas a Sara. Estás a aproveitar a juventude e as pernas frescas?

Não é por aí. Tínhamos uma baixa: uma jogadora que ficou do ano passado, operada a uma hérnia. Jogou a época toda e o verão na Austrália, chegou e foi operada logo. Está a recuperar e por isso a Sara e a Lea, eslovena, têm jogado muitos minutos.

Este ano há um contingente português inédito na Alemanha. Defrontaram o Herner TC, da Catarina Miranda e da Mariana Silva Pereira, neste fim de semana. Na 2. Bundesliga há a Teresa Faustino, a Tess Santos e a Bárbara Calvinho. O que está a mudar para os clubes alemães olharem para jogadoras portuguesas?

Com a Laura e a Maria, ficou uma imagem muito boa das portuguesas. Hoje tens duas características distintas: as universidades nos EUA levam as melhores; e a jogadora portuguesa é, neste momento, muito interessante em custo/qualidade. Estamos a desbravar caminho. Na primeira vez tens oportunidade, e o custo não é tão elevado quando és “rookie” lá fora. Como temos provado valor, já não é preciso olhar só para o mercado do Norte da Europa, que tradicionalmente agrada à Alemanha – finlandesas, suecas, letãs. Não se vão atirar para Espanha e para mercados fortes, mas o português começa a ser interessante para eles.

E quanto a treinadores portugueses, o teu trajeto pode abrir portas no mercado alemão?

Espero que sim, mas quando se chega a treinadores o mundo é mais difícil: entra a questão dos agentes, das “connections” (risos) e deixa de ser tão simples. No meu segundo ano na Alemanha, no primeiro ano da Liga, trouxe o Francisco Rothes. Não uso muito redes sociais, mas vou percebendo que há treinadores portugueses por cá, noutras ligas.

Falemos da Seleção de Sub20 femininos: Matosinhos 2025 não trouxe a permanência na Divisão A. Entre outras, não contaste com a Clara Silva, que vinha do Mundial Sub19. Que balanço fazes?

Ainda não me passou. Ficou-me atravessado. Não por perder, mas por ser a Seleção, que é maior do que o resto. Tínhamos um grupo de jovens que se esforçou muito para ficar na Divisão A. Foi um ano espetacular para Portugal, com os EuroBaskets masculino e feminino, e o Mundial Sub19 e os Sub20 na Divisão A. A preparação foi difícil porque não tínhamos muitas atletas disponíveis; não foi só a Clara. Perdemos também a Fatu (Fatumata Djaló), um problema grande. É líder em campo e lidera pelo exemplo. Depois disto tudo, o último jogo foi com a França. Se me dissessem no início que o último jogo seria com a França, pensava que seria final ou 3.º/4.º. Perdemos por poucos. A três minutos do fim estávamos no jogo, a França nervosa, depois fizemos disparates e elas fugiram. Quando começa a correr mal, às vezes corre mesmo. Subir nunca é fácil. Espero que a Sub20 e as outras voltem o mais rapidamente possível à Divisão A.

As Sub20 são antecâmara da Seleção A. Tens uma articulação próxima com o Ricardo Vasconcelos. Como funciona essa ponte, pensando que há jogadoras da A com 35, 36, 37 anos e a renovação será inevitável?

Desde que estou nas Sub20, o nosso jogo, conceitos e filosofia são completamente baseados na Seleção A, adaptados ao perfil das jogadoras. Quatro ou cinco coisas que usamos são iguais. Trabalhamos para que a entrada nas seniores seja o mais serena e fácil possível. Houve muitos verões em que fazia Sub20 e, quando havia estágio da A, estava muito focado nas que chegavam da Sub20, a fazer a ponte: abrir a porta, mostrar os primeiros passos. Não é fácil entrar na Seleção sénior: há ansiedade, medo de errar. Gosto desse papel de bengala de apoio. Falamos bastante sobre as jogadoras, o que desenvolvem e o que falta. Acho que isso vai voltar a acontecer.

Olhando para Sub18 e Sub16, que sinais vês e que prioridades técnicas devem ser reforçadas para acelerar uma transição serena para Sub20 e, depois, para as séniores?

Não há Seleção sem clubes. Os clubes e treinadores têm feito um trabalho espetacular; sem eles não teríamos estas jogadoras. Nos últimos anos temos tido problemas no lançamento, e preocupa-me. Não por falta de trabalho ou entrega, mas porque, quando chegamos ao alto nível, executar àquela velocidade e intensidade é outra coisa e as percentagens não têm sido boas. A defesa individual e coletiva tem de continuar a evoluir. Sub20 é um campeonato sénior. O salto de Sub18 para Sub20 é maior do que de Sub16 para Sub18: de repente jogas contra atletas que fazem EuroLeague Women e EuroCup Women todas as semanas. A componente tática entra mais a sério, especialmente a tática coletiva defensiva, e aí há dificuldades. Talento há; depois depende do nível em que competes durante a época para estares preparado para o alto nível.

Como geres calendário e cargas entre um clube fora de Portugal e uma seleção nacional?

Tenho uma vantagem: nos últimos anos, uma equipa técnica fantástica nos Sub20, com o Pedro Dias e a Gilda Correia. Todos os fins de semana vejo muitos jogos da Liga; não vejo todos, mas vejo vários, sobretudo jogadoras com potencial para Sub20. Para baixo, o Pedro e a Gilda fazem esse trabalho. Na Seleção, há coisas que conheço bem e outras que, naturalmente, não consigo acompanhar. Depois tenho a capacidade de desligar de uma coisa e ligar a outra. Este ano acabei o Europeu Sub20 e dois dias e meio depois estava a viajar para a Alemanha. Foi o melhor que me aconteceu: o meu “melão” era grande e mudar de chip ajudou-me a recuperar. O truque é esse: ligar o chip Sub20 quando é Sub20 e o do clube quando é clube.

Quando é que tens folgas? Agora só vais ter no verão, antes do próximo ciclo de seleções?

Raramente tenho folgas. Normalmente estou sozinho nestas coisas. Tive o Francisco, que ajudou mesmo muito. De resto, em 11 épocas fora, tive adjuntos três vezes. Nunca correu muito bem: dois despediram-se a meio, porque o trabalho era muito, e o outro não tinha interesse, e eu fazia quase tudo. Acabo as épocas todo roto.

E quais são as tuas perspectivas aí no BC Marburg?

No ano passado vim com contrato em aberto: fazia a época e, até ao fim, eu podia decidir não ficar ou eles podiam decidir não ficar comigo. Em janeiro ou fevereiro já estavam a falar de renovar e eu aceitei. Vinha de estar em casa até novembro, porque nos dois anos anteriores estive no Namur (Bélgica) – num deles com a Carolina Rodrigues -, pensei que estava tudo bem, mas mudou a pessoa à frente da equipa e afinal já não era assim. Fiquei sem clube tarde. Foi por isso que vim parar aqui. O que me fez decidir em dois dias? Vou ser honesto: venho trabalhar feliz aqui. As pessoas são competentes e são boas pessoas. Não é uma estrutura ultra profissional, mas venho trabalhar tranquilo. No desporto estás sempre com a cabeça debaixo de uma “chapa”, nunca sabes quando cai. Se ainda tiveres de te chatear quando vais trabalhar, torna-se pesado. Aqui venho trabalhar feliz todos os dias. Posso sempre esperar por um melhor clube, mas, com 53 anos, estar feliz começa a ser importante.

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