“Vim para os Estados Unidos por causa da Ticha”

Entrevista a um dos destaques portugueses na NCAA

Atletas
29 ABR 2024

Da primeira para a segunda época no basquetebol universitário, Filipa Barros conquistou um lugar em definitivo no cinco inicial de California Baptist e aumentou a utilização para 31 minutos por jogo, embora tenha falhado a March Madness por lesão. Em entrevista a Ricardo Brito Reis, a base de 20 anos natural de Vermoim fala da vida na Califórnia, da referência Ticha Penicheiro e do sonho da WNBA, e ainda da forma como foi moldada ao longo da formação no Guifões.

Que balanço fazes destes dois anos na Califórnia, especificamente desta época, uma vez que deste um salto muito grande em termos de utilização e preponderância na equipa.

O balanço é bastante positivo. No ano passado não estava tão confiante. O meu treinador dizia que eu era uma jogadora muito boa, mas precisava de confiança. A confiança do treinador sempre lá esteve. O ginásio foi uma coisa que me ajudou muito. Já o balanço deste ano é muito mais positivo e acho que tem a ver com o facto de jogar mesmo na posição 1, como base, porque é a posição em que me sinto mais confortável.

A NCAA é um mundo completamente novo, que implica uma adaptação, apesar de tu já teres tido experiência a nível sénior em Portugal. O que é que te levou a dar esse passo, e a querer arriscar no basquetebol universitário norte-americano?

Desde pequena. O meu objetivo foi sempre ir para os Estados Unidos. Tive sempre esse desejo de ir para os Estados Unidos. O meu pai dizia que podia ir para Espanha, mas eu sempre disse que queria os Estados Unidos, por causa da Ticha. Era só porque a Ticha (Penicheiro) tinha ido para os Estados Unidos.

A tua grande referência é a Ticha?

Sim.

Porquê?

Por ter sido a primeira portuguesa a jogar na WNBA, e o facto de ela jogar a base, que é a posição que mais gosto de jogar. Foi por isso.

Já conheceste a Ticha?

Já, nos europeus, em Matosinhos. Ela até me autografou a camisola, as sapatilhas, tudo o que eu tinha vestido na altura.

Tens outras referências, na WNBA e na Europa?

A Sue Bird. Pessoalmente, não vejo muito WNBA. Para ser sincera, não tenho muito tempo para ver basquetebol, mas costumo ver a liga portuguesa e os jogos do meu irmão.

Este ano jogaste praticamente 33 minutos por jogo, na tua posição natural. Em que é que sentes que contribuis para esta equipa e o que é que achas que, agora, com mais confiança, são os próximos passos para poderes continuar a evoluir?

Neste momento, sou uma jogadora que consegue fazer um pouco de tudo. No outro dia, houve um jogo em que marquei cinco pontos e ele, no balneário, vira-se para mim e diz: “Eu sei que tu achas que jogaste mal, mas tens 13 ressaltos, nove assistências, dois ou três roubos de bola e apenas um turnover”. Não são muitas as bases que conseguem ganhar muitos ressaltos e isso é uma coisa que me está a diferenciar. Como é óbvio, há muitas coisas a melhorar, muitas mesmo. O lançamento exterior pode ser uma dessas coisas a melhorar, a mão esquerda…

Este ano, ainda assim, deste um salto em termos de eficácia de tiro exterior. No ano passado estavas a lançar 27% este ano já vais em 31%. Mas falaste dos ressaltos e este ano tens oito jogos com pelo menos 10 ressaltos, o que não é muito normal para quem tem 1,73 metros. Fazes trabalho específico nessa área?

Eu acredito que os ressaltos têm muito a ver com o coração. Eu sinto que só jogo bem se ganhar muitos ressaltos, o que não faz muito sentido [risos]. Por acaso, o meu treinador diz que eu consigo perceber onde é que a bola vai cair, mas eu não sei. É só vontade de querer ganhar ressaltos.

O ressalto é aquilo que te motiva, que te faz sentir útil, mas também deves gostar de fazer umas assistências.

O que me dá mais gozo é ganhar ressaltos ofensivos. Porque posso acrescentar mais uma assistência ao passar a bola para fora. É dois em um.

Já disseste que este ano estiveste mais confiante, mais confortável. A verdade é que, como sophomore, foste titular de uma equipa que limpou a conferência, venceu a fase regular, conquistou o título no torneio e foi à March Madness.

Como equipa, tivemos as expectativas sempre muito altas. Só pensamos jogo em jogo, mas vamos sempre com tudo.

Há várias portuguesas na NCAA. Vocês falam entre vocês durante a temporada?

Sim, eu costumo fazer videochamadas com a Ana Barreto, com a Inês Vieira e com a Gabriela Falcão, basicamente, todos os dias. No ano passado, estávamos a passar uma fase complicada, mas todas. Ou seja, tentávamos dar conselhos umas às outras, mas toda a gente estava a passar mal [risos]… Mas este ano, toda a gente está a fazer bons resultados, por isso está a correr bem. As videochamadas continuam todos os dias, porque há uma certa hora em que já não consegues falar em Portugal.

Como é que fazes essa gestão, para falar com os teus pais, com o teu irmão, de quem já disseste que continuas a ver os jogos? “Apertas” com o teu irmão? E ele “aperta” contigo?

Sim, ele é terrível. Ficam acordados até às tantas da manhã para me ver. E o pior é que, se eu jogo mal, têm que ficar acordados mais uma hora, porque eu tenho que desabafar tudo, tenho que dizer tudo o que sinto. Mas este ano tenho jogado bem, por isso não tem acontecido tanto. (…) Eu não sou uma boa filha para estar longe de casa, porque eu não ligo quase aos meus pais.

E reclamam contigo, ou não?

Sim, mas vieram aqui de Natal, e disseram que agora entendem por que razão eu não ligo. Há muitas coisas ao mesmo tempo. O meu pai diz que fica triste por eu não ligar, mas que é bom sinal. É sinal que estou bem.

No teu plantel tens duas jogadoras espanholas. Isso ajuda, de alguma forma?

Este ano não consigo dizer uma jogadora na minha equipa que eu gosto mais. É a melhor equipa que eu já tive em toda a minha vida. Mas claro que o facto de ter duas espanholas é bastante bom. São das colegas com que me dou melhor. Há coisas que os americanos fazem, que os americanos pensam, a maneira de jogar, a maneira como reagem às coisas, que não é igual aos europeus. Mesmo a comida. Ou seja, quando algo acontece, nós olhamos mais umas para as outras, e o facto de eu conseguir falar espanhol faz com que haja sempre ali uma comunicação. É bastante útil. E vai ser para a vida. Este ano, agora no verão, vou para a casa da Cláudia, porque ela vive em Vigo.

Nos Estados Unidos, as ligações que se criam na universidade são muito fortes. Às vezes, mais fortes do que as ligações que se criam mais tarde, quando as atletas são profissionais. Consegues perceber o porquê de ser tão marcante essa experiência universitária?

Tem muito a ver com facto de passarmos quatro anos aqui e, durante esse tempo todo, vemos as mesmas pessoas todos os dias, a toda a hora. Eu vou para o treino das sete da manhã até às onze, vou para a escola, e depois vou jantar com elas. E são os melhores anos das nossas vidas. Passamos os melhores momentos das nossas vidas umas com as outras. Tem que ficar para a vida. É super marcante.

Ainda estás no segundo ano e ainda tens uma longa carreira universitária pela frente. Fazes planos para depois da universidade? Imaginas onde é que queres estar daqui a cinco anos, por exemplo?

Eu quero jogar ao mais alto nível, ou seja, na WNBA. Mas fico contente se for jogar na primeira liga espanhola. Ou seja, o objetivo é fazer do basquete uma profissão e jogar ao mais alto nível possível.

Mas queres muito jogar na WNBA, ou se viesse para a Europa ficarias satisfeita?

O objetivo de ter vindo para cá foi tentar a WNBA.

E os estudos?

Estou a tirar Relações Públicas e está a correr muito bem. A escola não é a coisa mais difícil. Só se torna mais difícil o facto de ser em inglês, porque de resto é tranquilo.

O facto de estares numa escola religiosa obriga a uma adaptação?

Agora está-se a tornar natural. Há muitas coisas que nos vamos habituando. Quando comemos em equipa, a equipa tem que rezar no início. Rezamos no balneário, rezamos no pavilhão. Nunca tinha ido à igreja e agora tenho que ir todas as terças-feiras. É como se fosse uma disciplina.

E viver na Califórnia? Já tiveste a oportunidade de ir dar um mergulho às praias?

Já! Depois da época acabar, estou lá todos os dias. É a melhor coisa da vida.

Como é que a ida para aí se processou? Porquê California Baptist? Como é que surgiu essa oportunidade?

Quando eu recebi o convite, nem pensei duas vezes. Passados cinco dias, assinei. Vi a maneira como jogavam e isso ajudou.

O que é que identificaste na forma como jogavam que achaste que seria benéfico para ti?

O facto de jogarem rápido. O objectivo do treinador é jogar sempre super rápido e quando ele me recrutou disse que uma das minhas maiores características era o facto de eu jogar. Quando eu estava em Portugal, só fazia pull ups, parei de fazer lançamentos na passada. Até o meu pai, que é treinador, me dizia que lançamentos na passada era uma coisa que eu podia fazer mais e eu não tinha percebido por que é que eu deixei de fazer.

Sentes que estás mais completa como jogadora?

Sem sombra de dúvida.

Todos os verões tens a oportunidade também de representar seleções nacionais. Isso é um momento importante para ti?

Sim, sim. É sempre uma sensação boa representar o meu país no mais alto nível.

E a seleção sénior é uma ambição que tens?

Tenho. É sempre um objetivo, um sonho.

Acabaste por ir para os EUA já com alguma experiência a nível sénior em Portugal. Acabaste por te estrear muito nova nas séniores do Guifões. E depois tiveste a passagem pelo Vitória. Em que medida é que isso foi importante?

Eu sempre fui uma jogadora que trabalhou muito, mas desde os 9 anos que sempre tive minutos de jogo. Quando fui para as séniores tive que trabalhar muito, no meu primeiro ano, para ter minutos de jogo. Depois acabei por ter bons minutos, mas tive que os conquistar. E isso deu-me a capacidade para perceber que, se eu não tenho minutos de jogo, tenho que trabalhar mais. Porque sou uma pessoa que, se não jogo, é o fim do mundo. Se jogo pouco, é o fim do mundo. Não deveria ser assim, mas é assim que a minha cabeça funciona. Jogar em séniores, em Portugal, ajudou-me imenso nesse sentido. E também o facto de, desde os meus 15 anos, jogar contra atletas experientes como a Joana Cruz, a Isabel Leite… Jogava com as melhores jogadoras portuguesas e treinava com algumas das melhores jogadoras portuguesas.

E ainda falas com elas, com essas veteranas com quem partilhaste o campo e o balneário?

Sim, continuo a falar com a Joana Cruz, com a Isabel Leite. Sempre que veem as minhas estatísticas e as publicações no Instagram, dizem-me que estão orgulhosas. Chamavam-me “Rookie mais Rookie”. Eu tenho 20 anos de diferença de algumas delas. Parece que estão orgulhosas como se eu fosse uma filha.

Vens de um clube emblemático no norte do país, do Guifões. O que é que torna o Guifões diferente para quem cresce naquele clube?

É a raça. Acho que não há nenhum clube, pelo menos no Norte, que tenha aquela vontade de ganhar. Podíamos comer o chão. Não saíamos de lá sem dar tudo. Costumo sempre dizer ‘raça guifonense’. A raça que eu tenho, por exemplo nos ressaltos, é por causa do Guifões.

Disseste há pouco que, quando as coisas não te correm bem, entras numa espiral depressiva e começas a questionar tudo. Mas isso é um processo, não é? É impossível jogar sempre bem em todos os jogos.

Sim. É só o facto de eu querer sempre mais. O meu problema é meter expectativas muito altas. Na minha equipa ninguém se vai aperceber isso. No meu grupo de amigos ninguém se vai aperceber isso. O meu treinador não vai perceber isso. Mas o meu pai percebe. Até agora estou num psicólogo para ajudar com essa parte. Foi uma coisa proposta por mim e pelo meu pai. Vivo muito o basquetebol.

O teu pai é um porto seguro para ti? E nota-se que é uma pessoa que te tem ajudado no campo e fora dele também.

Sem sombra de dúvida.

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29 ABR 2024

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